• VAMOS COMPRAR UM POETA

      Considere viver num mundo completamente numérico. Uma realidade onde tudo, desde os diálogos, até o entretenimento, são baseados em relações burocráticas, impecavelmente descritivas e técnicas em cada situação habitual. 

      Vamos comprar um poeta, do escritor português Afonso Cruz, conta a história de uma realidade distópica a partir dos cotidianos de uma família, narrada pela menina, filha do casal. É muito curioso o fato de que não recebemos informações comuns de quando estamos lendo uma história, que são as particularidades essenciais para a gente conhecer os personagens individualmente. Seus nomes são substituídos por números, e estes personagens não possuem descrições próprias ou nenhum detalhe que nos permita imaginar como são aquelas pessoas. Sendo isso totalmente proposital, Afonso Cruz buscou criar um cenário pouco personificado, com os nomes das coisas em excesso e com as pessoas quase que em um segundo plano na história.

      Neste livro, todos os artistas, poetas, escultores ou pintores, são vendidos em lojas, como se fossem bichinhos de estimação à espera de um novo dono. Quando, na hora do jantar, a menina pede para comprar um poeta, provoca uma certa estranheza na família, mas fica hesitante quando o seu desejo é acatado imediatamente. 

      "No dia da escolha, fomos a uma loja, eu e o pai. O pai não é alto, e eu tampouco, aliás, é por isso que me chamam ordenado mínimo (...) na loja havia poetas de muitos tipos, baixos, altos, louros, com óculos (são mais caros), sendo a maior parte, sessenta e oito por cento de barba". 

      Depois de ser recebido em casa com certa desconfiança pelos pais, o poeta começa, pouco a pouco, a mudar os costumes daquela família, que costumeiramente se descuida em relação às "transações" de sentimentos. Inicialmente, a menina sente um discreto incômodo por começar a ter suas emoções estimuladas a partir dos questionamentos do poeta. Para todos eles, tudo o que o poeta fala, parece loucura, mas ele segue, tranquilamente, fazendo reflexões no cantinho que sua nova família lhe destinou.  

      "Como é que o mar, tão grande, cabe numa janela?"

      Todos os assuntos com o poeta escapam de afirmações simétricas, do contexto de lucros e dividendos, de programações comerciais sobre economia e de roupas e comidas patrocinadas. O clima das conversas tende sempre a ser respaldado por uma linguagem de quem vive numa bolsa de valores generalizada mas, apesar disso, o poeta continua insistindo que viver é subjetivo, passageiro, humano e sentimental. 

      "O que é que este poeta faz? Poemas, respondi eu. Para que servem? Para muitas coisas".

      Ao mesmo tempo que acompanhamos as pequenas trajetórias de mudança daquela família, conseguimos associar claramente com a vida real, aqui do outro lado das folhas. Isso porque o autor faz uma espécie de crítica poética a um sistema que visa lucros e que só consegue enxergar números, métricas, estatísticas e, ainda assim, concentra um grande vazio nas relações. 

      Sim, é sobre ele mesmo que estou falando, o mundo capitalista que a gente é obrigado a viver! rsrs

      Não pude deixar de relacionar essa história, aparentemente ficcional, com as vidas patrocinadas e comercializadas que vemos o tempo inteiro no instagram, por exemplo. Estamos colocando as nossas vidas dentro de uma caixa eletrônica que vai retornar com métricas, dados, alcances de público, a cada publicação que fazemos. Chega a ser um pouco assustador o quanto nós nos tornamos números, que viram alvos e se tornam algoritmos. Tudo isso em forma de imagem. Assim como no livro, cafés da manhã são patrocinados por marcas que precisam que seu @ esteja circulando pelas redes. Roupas, calçados, tudo o que vemos e usamos, é mostrado a partir de símbolos, que representam empresas, que precisam de: LUCRO! E mais cifras, cálculos, e o que mais pode ser material e tangível.

      Tem muita resposta sobre o mundo nos livros e Vamos comprar um poeta pode ensinar sobre parar para observar, sentir, e encontrar poesia nas tarefas mais simples que realizamos. A vida poderia não permitir ambiguidades, mas sim, admitir as mais variadas interpretações, e as infinitas possibilidades, sendo a existência, uma forma de materializarmos tudo o que persiste dentro da gente. O que importa mesmo nessa narrativa, é mostrar ao leitor que numa realidade onde tudo gira em torno de produtos patrocinados, geração de lucro e de um mundo altamente burocrático, a vida passa muito longe da contemplação das subjetividades.

      "Nunca se abandona a poesia nem num parque, nem na vida".

      [bt]Compre aqui

      Sobre o autor: Afonso Cruz é um escritor, realizador de filmes de animação, ilustrador, designer e músico português. Estudou na Escola Secundária Artística António Arroio, nas Belas Artes de Lisboa e no Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira. Vive num monte alentejano perto de Casa Branca, no concelho de Sousel.

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