• SARAMAGO PREVIU O FUTURO?

      Eu levei muito a sério quando ouvi a palavra PANDEMIA. Não passaria logo, eu sabia. Foi naquela semana do dia dezessete. Era março, foi em dois mil e vinte e eu sinto que foi no século passado que minha vida era minimamente normal, com as preocupações básicas de uma mulher adulta de trinta e poucos anos.

      Foi muito rápido deixar de ser tudo o que eu aprendi a ser, até aquele momento. Comecei a sentir uma preguiça muito esquisita, mas não era possível que aquilo não tivesse outro nome e eu tive a ousadia de dar um sentido, uma denominação a essa coisa, porque eu me recusava a admitir que pudesse ser tudo uma simples desatenção pela ociosidade que eu estava vivendo no isolamento.

      Eu estava me desintegrando. Era isso. Estava me partindo, em decomposição, me despedaçando e eu queria chorar. Parar o mundo e chorar. Pensando bem agora, não lembro de como consegui escoar aquela lamúria e confusão mental. Eu simplesmente não conseguia chorar. Mas eu queria tanto.

      Anos atrás eu li "Ensaio sobre a cegueira", de José Saramago, escritor português. Essa história conta basicamente que surge uma epidemia de cegueira branca, numa sociedade que vivia normalmente até então. Cidades, casas, carros, casais, supermercados. Era tudo aparentemente normal até começar a surgir essa tal doença misteriosa. Um número cada vez maior de pessoas começava a se contaminar com essa cegueira que não tinha a menor explicação. Por causa da emergência geral, e da desordem iminente, o governo começa a agir rapidamente, isolando pessoas infectadas em locais afastados, sem ter ideia de que maneira eles poderiam frear o contágio, já que ninguém conseguia identificar como a cegueira branca era transmitida. 

      Um grande caos social. Imagina, acordar cego e não fazer ideia de como aconteceu nem de como vai tratar aquilo. A arte tem esse poder de choque de realidade porque se aproxima da vida real, muitas vezes, de um jeito tão forte e impactante, que até parece conspiração.

      Comecei a pensar que estamos vivendo a nossa própria cegueira, de um jeito tão consciente que assusta. A gente começou a espalhar um vírus que mata, e mata muito. Ele sufoca, deixa as pessoas afogando no seco. E seguimos a vida normalmente, acostumados a essa apatia que nos impede de ver o essencial, o simples direito à vida. 

      Saramago foi tão genial nessa história que seria impossível ela ser superada por qualquer situação da vida real. Eu me enganei. Do lado de cá está tudo muito pior, e, mesmo que eu soubesse que o susto não passaria rápido como muita gente esperava, eu não teria apostado tão longe. 

      "É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade". José, meu caro, você desnudou o Brasil dessa década de dois mil e vinte quando apenas parecia se referir àquela história, tudo fruto na sua engenhosa imaginação, publicada vinte e um anos atrás.

      Eu continuo procurando novos nomes para essa sensação clandestina de preguiça que é assim, amorfa, prosaica, capciosa e que tenta me deixar tão cega que fico me perguntando se a cegueira branca de Saramago também já me contaminou. A vida real está bem mais assustadora por aqui.

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